terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

#PLdoVenenoNão

No último dia 9 de fevereiro foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6299/2002[1], chamado também de #PLdoVeneno. O extenso Projeto propõe mudanças na legislação e na cadeia produtiva e distributiva de agrotóxicos em território nacional. O relator do PL é o Deputado Federal Luiz Nishimori, do Partido Liberal do estado do Paraná (PL-PR). Nishimori integra a bancada ruralista – a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) – no Congresso e tem histórico de venda de agrotóxicos e associação com empresas agroindustriais[2].

Dentre as mudanças, o Projeto, se aprovado e sancionado, torna competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) a fiscalização, a análise dos venenos para uso da agropecuária e a aplicação de penalidades aos criminosos ambientais, marginalizando o papel da ANVISA e do IBAMA no controle de agrotóxicos no Brasil. Além disso, torna-se competência exclusiva do MAPA a auditoria de empresas e institutos de pesquisa.

A atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina, é ex-presidente da FPA. Além disso, o MAPA possui histórico de decisões tomadas sem embasamento científico, como a liberação de plantio de soja mesmo no ‘vazio sanitário’, época do ano que há um hiato entre as plantações para evitar a proliferação descontrolada de pragas[3].

Deixam de ser proibidos, em caso de aprovação do PL 6299/02 no Senado e consecutiva sanção, registros de agrotóxicos que possuam características que induzem deformação fetal, distúrbios hormonais, câncer e outros horrores. Ademais, ao revogar totalmente a Lei atual sobre agrotóxicos (Lei 7.802/89[4]), o PL do Veneno limita as entidades que podem pedir impugnação ou cancelamento de registro de determinado produtos dados seus prejuízos ambientais e à saúde humana[5].

A questão do sistema alimentar se dá a partir de diversos planos que precisam ser analisados de forma integrada, sistêmica. Os impactos desses sistemas se manifestam na saúde, no bem-estar individual e coletivo, na integridade ambiental e planetária e na estabilidade das nações[6]. Desse modo, a questão alimentar se dá, de forma integrada, nas dimensões ambiental, econômica, política, social, sanitária e nutricional, somente para citar algumas.

Algumas problemáticas podem ser levantadas a partir desse cenário. O relatório HLPE da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), por exemplo, reconhece a nocividade das ações das grandes corporações transnacionais do setor alimentício. O IPES-Food, em uma análise holística, concentra-se nas relações diferenciais de poder dos sistemas alimentares no mundo e de suas consequências. Assim, são reconhecidas as desigualdades políticas como fatores de promoção das mudanças climáticas, vulnerabilidade social, pobreza e outros, visto que nesse processo as pessoas com baixo ou nenhum poder relativo são excluídas nas tomadas de decisões, sendo elas as que são mais impactadas por essa realidade.

A problemática dos sistemas alimentares também não pode e nem deve marginalizar o papel da sociedade internacional nos assuntos internos do Brasil, dada a Divisão Internacional do Trabalho. Segundo Capra (1982, p. 214), as grandes companhias “[a]busam do solo e dos recursos agrários dos países do Terceiro Mundo a fim de produzirem safras altamente lucrativas para exportação, em vez de alimentos para as populações locais, e promovem hábitos nocivos de consumo[...]”. Suas agências se dão a partir do controle do processo legislativo e pela distorção de informações transmitidas através dos meios de comunicação de massa ao público, além de influenciar o sistema educacional e a produção acadêmica por meio de crescentes investimentos privados na área.

Está em curso também uma disputa discursiva. Uma das proposições trazidas pelo PL 6299/02 é o uso dos termos ‘defensivos agrícolas’ e ‘pesticidas’ para se referir aos agrotóxicos, como se o agrotóxico matasse apenas pestes presentes na safra e não seres humanos. Quando usados em florestas e ambientes hídricos, os agrotóxicos serão referenciados como ‘produtos de controle ambiental’. Objetiva-se com isso retirar a carga negativa que o termo agrotóxico carrega, de forma a mudar a percepção das pessoas em torno dos impactos desses produtos tóxicos na vida das pessoas, a partir de uma mudança de nomes. Conforme Rancière (2014, p. 117): “Se as palavras servem para confundir as coisas, é porque a batalha a respeito das palavras é indissociável da batalha a respeito das coisas”. Assim, é preciso ficar atento à construções discursivas promovidas por determinados setores que possuem maior poder e influência política e atacam as consquistas sociais de múltiplos fronts. Outro exemplo dessa guerra discursiva se dá no setor do garimpo, termo que passa a ser reconhecido oficialmente como ‘mineração artesal’ a partir do decreto nº10.966, de 11 de fevereiro de 2022.

A compreensão dos sistemas alimentares transita por diversas áreas que precisam ser estudadas como um sistema integrado de ações. Observa-se a agência de agentes privados do setor agroindustrial em variadas dimensões sociais, exigindo-se um esforço coletivo no combate à crescente invasão de seus interesses no espaço público. A retomada dos espaços públicos por agentes defensores de justiça social e responsabilidade ambiental, porém, exige uma maior reflexão quanto a natureza dos problemas a serem enfrentados, o que leva tempo, mas que é fundamental na tomada de decisões que perdurem de forma efetiva no longo prazo. A mudança de percepção do social e dos problemas a serem enfrentados de fato, pode ser um caminho para as transformações necessárias, envolvendo cultura, educação e ações que provavelmente só irão ser sentidas nas próximas gerações. Dessa maneira, impõe-se um pensar conciliador entre o agora e o futuro, de forma a atenuar os estragos aos quais estamos sendo bombardeados no presente momento e evitar que isso se repita nos próximos anos.



[1] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=46249

[2]https://deolhonosruralistas.com.br/2018/07/12/relator-do-pl-do-veneno-luiz-nishimori-vendeu-agrotoxicos-no-parana/

[3] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59999292

[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7802.htm

[5] https://www.camara.leg.br/noticias/849479-camara-aprova-projeto-que-altera-regras-de-registro-de-agrotoxicos/

[6] REIS et al. Relações entre saúde e meio ambiente a partir do enfoque da SAN.


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