domingo, 2 de maio de 2021

TRIPÁLIO

 


O termo trabalho associa-se à uma genealogia negativa, significando uma experiência dolorosa, torturante, de submissão, de exploração, de fragmentação, de lucro. A mecanização do trabalho gerou homens alienados de seu produto – exceção para os produtos artesanais – não havendo mais conexão entre o que se faz. Houve uma ruptura nas relações entre os homens, e entre nós e a natureza. Aliás, dificilmente as crianças urbanas sabem de onde vem a água que sai da torneira ou o alimento à mesa. 

Mas também há uma conotação positiva para o “trabalho”. Durante muitos séculos, entre os povos originários as atividades de plantio, da colheita, caça, pesca que representavam a sobrevivência estiveram ligadas a ações plenas de sentido. Todas as tarefas eram realizadas como parte integrante da vida, com festas para o plantio, para as colheitas, com cerimoniais para as grandes caçadas e para as pescarias coletivas. Se implicavam na sobrevivência do grupo, fortaleciam laços de solidariedade e de comunhão com os outros e com a natureza, sem separação, sem ruptura.

Acredito e defendo que o trabalho é uma condição da humanidade. Ele contém a capacidade humana de intervir e interferir sobre o mundo. Tudo o que é, é fruto do trabalho. Além da condição de classe, somos todos trabalhadores, mesmo “os proprietários dos meios de produção”, definido no corolário marxiano. Não nego que existe uma enorme diferença entre aqueles que se apropriam do poder e se fazem representar, simbolicamente, como “donos do poder”. Isto é uma construção histórica, pois as forças estruturantes da sociedade capitalista e conservadora são imbricadas e fortes, construídas ao longo do tempo, sendo, por exemplo, possível mapear a gênese de muitas famílias “poderosas” no Brasil.

Esses grupos ocupam espaço nas estruturas do Estado – monopólio da violência e controle da tributação e da representação - com seus discursos e símbolos exercem o poder nos territórios - definidos como o “espaços vividos”.  Todo discurso contém uma fonte de poder que pode separar, dividir ou criar pertencimentos. Discursos são representações.  São ferramentas de construção ou conquista de poder que afetam a realidade. Criam contradições entre essência e aparência, competividade, sustentam-se em ideologias, nas ideias.

As pessoas se tornaram mais individualistas e o Capitalismo se aproveita disso, da destruição e enfraquecimento das resistências, ou “oportunidade de poder” dos diferentes grupos sociais. Todos nós criamos representações e disputamos nossos discursos. O Estado é uma instituição, já os dirigentes são pessoas que agem com interesses díspares. Então, pode-se pensar na genealogia das oportunidades de poder. Em uma sociedade ideal, com leis justas, bem-estar da coletividade, utópica em contraposição à distopia, esse lugar hipotético/real onde se vive sob sistemas opressores, autoritários, de privação, perda ou desespero, uma antiutopia. 

Que lugar a gente ocupa? O poder nos territórios é negociável por aqueles que querem fazer parte, por isso é necessário saber onde a gente se situa. E de ampliar nossos discursos, refletir sobre que discursos podemos proferir para melhorar nossas práticas, avançar nosso pensamento, ampliar nossa visão, ver saídas para as impossibilidades. Ver outras conexões possíveis numa perspectiva relacional, outras formas de olhar para os territórios. Construir discursos para agregar as pessoas de maneira razoavelmente/profundamente ética. Ver nas imbricações dos discursos, formas de furar o bloqueio, de encontrar brechas no associativismo, no comunitário, na agricultura sustentável, no bloqueio da FOME que avança avassaladora e de maneira assustadora no Brasil atual. 

Como valorizar o que não sabemos a origem, se vemos tudo separado, sem interconexões? Penso se seria possível descontruir a separação do individualismo. Se sabemos que não existe ser isolado, talvez haja possibilidade de se reconstruir as conexões, bases da solidariedade. As interconexões são a fonte da própria existência. Estamos conectados nas redes sociais, bastante desconectados da vida real, isolados bem antes da pandemia da Covid-19. 

O trabalho é uma questão de identidade. E a identificação com o que se faz, agarra na gente, como uma segunda pele. Antes da aposentadoria, tive muitas dúvidas de como ficaria sem a “identidade” de trabalhadora. E a tomada de consciência em relação às minhas muitas identidades, veio com benfazeja força. Percebi e valorizei o ser mulher, a atriz, o trabalho doméstico, de mãe, de irmã, de tia, de aprender outras funções, de resgatar a escrita solta, sem intento. O tal “ócio criativo” se incorporou à minha nova realidade de aposentada. O ser político permaneceu, pois sou parte integrante do mundo que habito.  

Autor: Marluce Cerqueira

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